sexta-feira, 1 de julho de 2011

Transparência Seletiva



Che Guevara - por Alberto Korda 

A memória é seletiva e o ato de fotografar também. Se o fotógrafo não dominar o programa no aparelho será programado por ele. O ato de fotografar, segundo  
Susan Sontag, seria uma transparência seletiva, diferente do pintor que faria somente uma interpretação seletiva.





A memória social, como a individual, é seletiva, os princípios de seleção variam de lugar para lugar, ou de um grupo para o outro, e se transformam na passagem do tempo. Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos indivíduos, bem como na pressão social e na associação de ideias. Os valores dos indivíduos são constituídos socialmente, é o que eles consideram importante, relevante, significativo; a importância do caráter significativo foi ressaltada por HalbwachsOs valores não são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo histórico de vida, desde sua socialização, que ele vai produzindo os seus valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode, inclusive, ser contraditória.

Com o fotógrafo não é diferente, é um homem que age através do poder[1] concedido pela a máquina fotográfica. Como se possuísse o fotografável determina o quê e como representar. Como guardião, seleciona o que será lembrado. Sua seleção inicia-se na pré-visualização, e nos seus parâmetros culturais; conceitos em cenas. Transcodificando estes parâmetros em imagens técnicas. Traduzindo ideias em conceitos. Cada fotografia é uma cena privilegiada, um instante selecionado do momento. Segundo Susan Sontag: “A fotografia não é só pseudopresença, mas também símbolo de ausência.” (SONTAG, 1981: 16). Isso demonstra essa característica seletiva do fotógrafo, o que representar num lugar e como.

Existem alguns controles técnicos que determinam a linguagem fotográfica, como lentes especializadas, enquadramentos e fotometria. Mas há também uma intensão de mensagem, e pra isso o fotografo estabelece um punctum[2], mesmo que não saiba como, o fotografo determina esse ponto, selecionando o que se deve olhar na imagem. Faz um jogo de percepções com receptor.

Barthes se aprofundou e analisou estas questões perceptivas na imagem fotográfica. Tendo o gesto do Operator (fotógrafo) o de surpreender o Spectator (receptor), isto traduzido em desempenhos, como: raridade do referente; apreender um gesto no seu trajeto efêmero; proeza; exploração das limitações e defeitos; e ter um grande “achado”, o inédito. Observou que na fotografia existiam algumas classificações intrínsecas, no que se refere seu corpus:
·         Fato/Empíricas (Profissionais/Amadoras);
·         Retóricas (Paisagens/Objetos/Retratos/Nus);
·         Estéticas (Realismo/Pictorialismo etc.).

A Fotografia apresenta uma dualidade de elementos, onde um deles exige do spectator um reconhecimento cultural, gerando um gosto inconsequente, isto seria o Studium: um conjunto de elementos que denotam a história e características na fotografia; o outro seria um ponto de atração visual, o Punctum. “Reconhecer o Studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com eles, aprova-los, mas nem sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura é um contrato feito por criadores e consumidores.” (BARTHES, 1984: 48). O punctum, delimitado ou não, trata-se de um suplemento, acrescentando à foto algo já existente nela.  Não seria possível estabelecer uma regra de ligação entre os dois elementos, o studium e o punctum; é uma co-presença, uma casualidade explicando o detalhe.

Além destes fatores, a fotografia possui um estigma que não o “detalhe”. Seria um “novo punctum”, que não seria de forma, mais de intensidade: O Tempo. De acordo com que o tempo se revela, é revelado também o tempo do fotógrafo. O fotógrafo não só escolhe quando vai fazer, o horário, como também enquanto tempo. Essa relação de tempo pode ser registrada quando o movimento é priorizado. É um lapso do tempo selecionado pelo o fotógrafo. Um tempo do fotógrafo. Barthes fala sobre a imobilização do Tempo ocorre de um modo excessivo “monstruoso”, sendo obstruído. É o modo como nosso tempo assume a morte, sob o álibi denegado perdidamente vivo, de que o fotógrafo é o profissional.

Um último ponto de parâmetro seria o “ar”. Uma transmissão do estado de espírito; o temperamento do referente revelado pela imagem. Como um suplemento da identidade, despojado de qualquer “importância”. O ar exprime o sujeito, na medida em que ele não se dá importância. Neste caso o “fotógrafo-flâneur” tem de estar imerso na realidade, seleciona das expressões do personagem aquela que vai traduzir simbolicamente o referente. Como a fotografia de Che Guevara, realizada pelo Alberto Korda, tornou-se uma das fotos mais reproduzidas de todos os tempos.


 A fotografia é um convite à dedução, à especulação à fantasia. O receptor ao analisar uma imagem fotográfica, seleciona o que vê, e a intensão selecionada do fotografo ifluencia essa seleção do recptor. O recptor como referente seleciona quais imagens vão traduzir sua vida, quais as que vai compartilhar. O fotografo seleciona como estas imagens serão visualizadas, antes do receptor, o fotografo selecionou uma visualidade, selecionou um tempo, selecionou uma linguagem, selecionou seu referente e o que será imortalizado.







[1] SONTAG, Susan. Ensaios sobre Fotografia [tradução de Joaquim Paiva]. Ed. Arbor, 1981, p. 8.
[2] BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.







segunda-feira, 23 de maio de 2011

Registro Fotográfico – o relato visual



The D-Day - Robert Capa
        
“As imagens que mobilizam consciência estão sempre ligadas a
 determinadas situações históricas (...) a fotografia não gera atitudes morais, 
mas pode reforçá-las – e contribuir para que atitudes incipientes se consolidem.” 
Susan Sontag




            O mundo representado é produto último da complexa cadeia causal da profusão de imagens. Reflete raios que foram fixados sobre superfícies sensíveis através de reação física e química num processo ótico. A imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por uma cadeia interrupta de causa e efeito[1]. Porém esse caráter é atribuído à imagem técnica (imagem reproduzida mecanicamente, no caso a fotografia), onde seu caráter objetivo e direto faz com o receptor/observador as olhe como se fossem janelas da realidade exterior. “O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos (...) a tarefa da imagem técnica é de estabelecer código geral para reunificar a cultura.” (FLÜSSER, 2002: 14, 17)


A fotografia é uma prova não só do que está ao seu redor, mas também do que o indivíduo vê, não só um registro, mas uma avaliação do mundo. A fotografia não revela simplesmente a realidade, ela investiga e avalia por sua fidelidade. Em vez de simplesmente registrar a realidade, a fotografia tornou-se a forma como as coisas nos parecem, transformando assim a própria noção de realidade.


É um novo tipo de memória que se sobrepõem à memória escrita, assim como essa se sobrepôs à memória oral. Eternizar o momento, essa foi a grande inovação da fotografia. E precisamente por lapidar e cristalizar determinado momento num instante que toda fotografia é testemunha da dissolução inexorável do tempo. Não fotografar seria sinal de indiferença perante a um indivíduo ou evento; ao fotografar participaríamos da vulnerabilidade e mutualidade de uma pessoa, objeto ou acontecimento.



“Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas (...) vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies (...) o fato relevante a ela é que as fotografias abrem ao observador, visão do mundo (...) era de se esperar: o universo fotográfico representa o mundo lá fora através deste universo, o mundo.” (FLUSSER, 2002, pp.14, 17).



Pode constituir perfeitamente a prova irrefutável de que certo evento ocorreu, e diferente da pintura que é uma interpretação seletiva, a fotografia poderia ser “considerada uma simples transparência seletiva (...) fotografar é apropriar-se da coisa fotografada” (SONTAG, 1981: 6, 7). A fotografia nunca é menos que um registro de uma emanação, vestígio material do tema fotografado, a tal ponto que pintura alguma poderia comparar-lhe. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. Ao contrário, a fotografia jamais se pode negar que a coisa esteve lá. Isso por causa do seu referente, que é a ordem fundadora da Fotografia. Seria então um “Isso-Foi”, ou ainda: o intratável. Segundo Roland Barthes: “ela realiza a confusão inaudita da Realidade (Isso-Foi) e da Verdade (É Isso)” (BARTHES, 1984:158).


            A fotografia é um instante do momento privilegiado, convertido em um pequeno objeto que se pode guardar e ver novamente; ela brinca de escala do mundo, reduz, corta e fixa aquilo com que nos deparamos. Tornou-se um dos principais instrumentos capazes de nos fazer conhecer determinada experiência, dando-nos a sensação dela participar, mesmo só como observadores. Causa impacto na medida em que revela algo original; é valorizada porque nos fornece informações. Ela é uma pequena porção do espaço, bem como do tempo. Ela registra e reproduz, seu rastro sugere que aquilo existiu.


           

“A noção de rastro postula que coisa e imagem estejam, ao mesmo tempo, ligadas pela força de um contato físico, e separadas por uma incisão franca e brutal, sem mediação, que os lingüistas qualificarão de “corte semiótico”. Quanto ao registro, o aspecto químico da fotografia reforça a representação em seu funcionamento ao mesmo tempo bipolar (de um lado a coisa, do outro a imagem) e em sentido único: da coisa à imagem, do exterior (o mundo) para o interior (a câmara escura). O registro e a rastro consagram evidentemente o caráter mecânico da imagem, a nova mescla dos corpos no âmago de seu processo de produção, visto que a fotografia põe a relação coisa-imagem no lugar da relação pintor-quadro.” (ROUILLÉ, 2009, p.76)



            A confiabilidade, a exatidão e precisão que caracteriza a fotografia contribuem para a adaptação do domínio da imagem em relação o tempo, sendo possível dar conta do papel de intercessora, se beneficia do status de documento a fim de registrar metodicamente e mimeticamente tudo aquilo que um dia irá desaparecer.


            Garantir a mediação entre o aqui e o que esteve lá é uma das grandes funções da fotografia. Ao dirigir o olhar para os limites do tempo, a fotografia acompanha o olho do especialista em outra direção. A fotografia faz ver mais, ela permite, sobretudo, enxergar coisas diferentes daquelas oferecidas somente na imagem, produz novas visibilidades, extrai evidencias inusitadas e não percebidas no momento do fato ocorrido. Assim, a fotografia provoca um despertar de consciências. 

            A fotografia não apenas tornou possível que se captasse mais profundamente através do ato de ver, modificou a própria visão, conduz ao conhecimento das coisas, na medida em que despe a visão e possibilita a análise. “É freqüentemente invocada como uma contribuição à compreensão e à tolerância” (SONTAG, 1981:106)   


            O registro fotográfico é a reunião da intenção do fotógrafo, acrescida de fatores intelectuais, emotivos, fundamentados em um tratamento expressivo que ele fornece sobre significado de ver e registrar a realidade que representa na imagem fotográfica. O registro caracteriza o principal elemento constitutivo da narração visual, a fotografia intensifica o ato de olhar, gravando a observação do fenômeno. Enfatiza o conjunto de dados empíricos reunidos, disponibilizando elementos mais transparentes na investigação. Susan Sontag afirma que: “A fotografia implica inevitavelmente certo patrocínio da realidade. Por estar ‘lá fora’, o mundo passa a estar ‘dentro’ da fotografia” (SONTAG, 1981:79). Confirmando a existência de uma perfeita analogia do registro fotográfico com o real.


Assim, através da imagem fotográfica, é possível a reativação da memória para fatos e objetos anteriormente vistos, e devido à limitação da visão e da percepção de um mundo em movimento - elementos que desfilam diante da visão, passam despercebidos. 


         Na passagem do visível para o visual, foi necessário reconhecer e, de certa maneira, integrar três modalidades de tratamento[2]: o documento visual como registro produzido pelo observador; o documento visual como registro ou parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente, a interação entre observador e observado.

A visualidade e seu circuito comunicativo projetam para o futuro as imagens produzidas num certo presente, como uma mensagem que se processa através do tempo, como documento e monumento[3], compondo o tempo da experiência de projetar um mundo pleno de significados e visualmente relevante. O que é visualmente relevante no presente chega ao futuro como um passado visível. O agenciamento das imagens ao longo do tempo é mediado por um conjunto de práticas sociais de rememoração e esquecimento, distinguindo o que merece, ou não, ganhar destaque na produção de certa memória social dos grupos, família e nações.

Os modos de representação do espaço influem nas imagens da cidade e, estas repercutem nas posições que os sujeitos assumem a respeito das ações propostas para a coletividade. Transformações manifestadas na cidade contemporânea em sua busca incessante pelo progresso aniquilando marcas do passado. Em um mundo em constante transformação, não só física, mas também social, a fotografia (imagem técnica) se tornou um elo com o passado, uma espécie de máquina do tempo, sendo assim um memento mori. E ao fotografarmos, participamos da vulnerabilidade temporal das coisas. A fotografia e sua relação com o tempo valorizam tanto a arte temporal como a informação histórica. Preenchem vazios no retrato mental, tanto do presente quanto do passado.

Como resultado de uma atividade da visão, a fotografia produz um registro sensível da experiência social, através de um aparelho, a câmera fotográfica. Registra-se a experiência vivida em um determinado tempo presente. Assim, a prática fotográfica circunscreve um espaço social, cujo primeiro objetivo seria compor uma imagem do tempo vivido ou tempo da experiência observada. Caracterizada como fruto pós-histórico, torna-se assim, consequência de todo ato humano, pois tudo tende a ser registrado pela a imagem técnica. O que se vê e se considera digno de registro, define uma visualidade historicamente determinada por uma economia de sentidos e seleção de representações, associadas aos diferentes grupos sociais.






[1] BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 
[2] LE GOFF, Jacques. Memória. In: _____. História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2003.
[3] MENESES, Upiano. Revista Brasileira de História, vol. 23, nº45.








quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Olhar Enquadrado



Auto-Retrato

 "A visão fotográfica implica uma aptidão para
 descobrir a beleza no que todo mundo vê, mas despreza,
 por ser excessivamente comum (...) Há um heroísmo peculiar pelo mundo a fora desde que se inventou a câmara: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou novo modelo de atividade independente que permitiu a cada um
revelar certa sensibilidade única e ávida." 
Susan Sontag



Por causa da rapidez da câmara, registra-se tudo, o fotógrafo fez do ato de ver um tipo novo de projeto. Como se o próprio ato de ver fosse capaz de revelar a verdade. Não há apenas a atividade simples e unitária da visão (registrada e auxiliada pela câmara), mas uma “visão fotográfica”, que ao mesmo tempo é uma nova forma de ver, é uma atividade desenvolvida.

O fotógrafo contempla esta realidade com curiosidade, desprendido e onipresente, opera como se sua atividade transcendesse os interesses de classes. Estas características da fotografia são do flâneur; adepto da observação, conhecedor da empatia, vê o mundo de forma pitoresca. Não se sente atraído pela realidade não-oficial que está por detrás da fachada da vida urbana, mas sim aquela que distorce as relações sociais.

Segundo Flüsser, o fotógrafo se move como um caçador paleolítico em busca de sua caça numa tundra. Porém não se movimenta como se estivesse em uma pradaria aberta, e sim na floresta densa da cultura, levando em considerações os obstáculos dos objetos culturais, objetos que contêm intensões determinadas, o fotógrafo em seu caminho tortuoso avança contra as intensões programadas da cultura que o rodeia.


“Um espaço-tempo fotográfico, que não é nem newtoniano nem einsteniano. Trata-se de espaço-tempo nitidamente dividido em regiões, que são, todas elas, pontos de vista sobre a caça. Espaço-tempo cujo centro é o “objeto fotografável”, cercado de regiões de pontos de vista. Por exemplo: há região especial para visões muito próximas, outra para visão intermediárias, outra ainda para visões amplas e distanciadas. Há regiões espaciais para perspectiva de um pássaro, outras para perspectiva de um sapo, outra para perspectiva de criança. Há regiões espaciais para visões diretas com olhos arcaicamente abertos, e regiões para visões laterais com olhos ironicamente semifechados. Há regiões temporais para um olhar-relâmpago, outras para um olhar sorrateiro, outras para um olhar contemplativo. Tais regiões formam uma rede, por cujas malhas a condição cultural vai aparecendo para ser registrada.” (FLÜSSER, 2002: 30)

           
Mudando de regiões, o fotógrafo, altera entre barreiras de tipos de espaço e os tipos de tempo; emancipa-se dos padrões da condição cultural pré-estabelecida. Porém só fotografa o fotografável. Transcodifica os objetos culturais em cenas conceituais com critérios de sua ética para trazer informação e conhecimento.

As características do caçador no qual o fotógrafo e seu aparelho se confundem, formam uma unidade funcional inseparável. Produz superfícies nas quais se realizam em cenas. Estas significam conceitos programados na memória do fotógrafo e do aparelho, num jogo de permutação homem/máquina transcodificada em imagem. Hesitações claras e distintas num jogo quântico de saltos e pontos de vistas.

Susan Sontag diz que: “o fotografo saqueia e ao mesmo tempo preserva, denuncia e consagra.” (SONTAG, 1981: 65). Através de um mistério que envolve a mortalidade e a transitoriedade, fornece histórias instantâneas, sociologia instantânea e participação instantânea. Resume a realidade num cortejo de fragmentos casuais. “O fotógrafo fez do ato de ver um tipo novo de projeto: como se o próprio ato de ver, perseguido com suficiente avidez e sinceridade, fosse capaz de reconciliar os imperativos da verdade com a necessidade de achar o mundo belo.” (SONTAG, 1981: 85)

Sontag chamou de heroísmo da visão, pois inaugurou novo modelo que permitiu a cada um revelar certa sensibilidade única e ávida. Numa espécie de safári cultural, científico e de classe, o fotógrafo ludibriaria o mundo, qualquer que fosse o sacrifício de paciência e desconforto, por meio de uma visão ativa, gananciosa, calculada e informativa.


“A visão fotográfica implicava uma aptidão para descobrir a beleza no que simplesmente ver o mundo tal como ele é, incluindo suas maravilhas já celebradas; deveria provocar interesse, por meio de novas decisões visuais (...) o belo tornou-se simplesmente o que o olho é incapaz de ver (ou não vê): aquela visão fraturada, desconjuntada, que tão somente a máquina fotográfica pode proporcionar.” (SONTAG, 1981, pp. 87, 88). 


            Susan Sontag comenta em se livro que Alfred Stieglitz relatou com orgulho o fato de ter permanecido três horas durante uma tempestade esperando o momento exato para realizar sua fotografia “Quinta Avenida, Inverno”, esta busca do momento exato se tornou a marca registrada do fotografo. Cartier Bresson foi o pai desta escola, onde o instante decisivo e a composição equilibrada são as características principais. Como se fosse um praticante de bushido[1], espera o tempo que for para dar o clique no momento exato, como se o fotografável e o fotógrafo fossem um.

            Fotógrafos como Edward Weston, imortalizou a geografia do corpo humano com os close-up de nus, e Minor White, conhecido pelo foco nítido e a bela tonalidade de preto-e-branco que funcionam como metáforas; Paul Strand, com formas geométricas ou abstratas, assumiu outra atitude com relação ao sensorial, uma espécie de cultivo didático da percepção, independente das noções relativas ao que vale ou não a pena desse observar; Moholy-Nagy fomentou esta visão em seu livro "Von Materiel zur Architektur", publicado em inglês como "The New Vision". Defende a auto-omissão, uma transformação psicológica da visão, e em 1936, ampliou para mais oito variantes da visão fotográfica: abstrata, exata, rápida ou lenta, intensa, penetrante, simultânea e distorcida; Albert Renger-Patzsch que publicou o best-seller: "Die Welt ist schön" (O Mundo é Belo), que consistia em 100 fotografias, na sua maioria close-ups, cujos temas incluíam desde uma folha de colocásia até as mãos de um oleiro. Influenciaram percepções do belo e da contemplação na visão fotográfica.


“Enquanto a maior parte das pessoas que tiram fotografia está tão somente repetindo noções assimiladas sobre o que seja belo, os fotógrafos profissionais muitas vezes pensam que as estão desafiando (...) o fotógrafo tomou para si a responsabilidade de levar adiante a tarefa de Blake de apurar os sentidos, ‘relevando ao outros o mundo que vive ao nosso redor’, tal como Weston descrevia seus trabalhos, ‘mostrando-lhes aquilo que seus próprios olhos cegos não haviam visto’ (...) a visão fotográfica, quando examinamos seus preceitos, vem a ser, na verdade, a prática de uma espécie de visão dissociada, um hábito subjetivo que se vê fortalecido pelas discrepâncias objetivas entre o modo como a câmara e o olho humano focalizam e julgam a perspectiva.” (SONTAG, 1981, pp. 93, 94).


A linguagem da visão fotográfica extrapolou os limites da percepção ótica do homem e com sua simulação de um mundo em preto e branco determinou um novo parâmetro racional. A fotografia em preto e branco é uma imagem de cenas em situações “ideais”. O branco é a presença de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. Roland Barthes demonstrava favoritismo pela fotografia Preto e Branco: “a cor é um revestimento aposto ulteriormente sobre a verdade original do Preto-e-Branco.” (BARTHES, 1984, p. 122). Segundo Flüsser, o preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da ótica. Cenas em preto e branco não existem, mas fotografias em preto-e-branco, sim. Transformam seus conceitos em cenas. A fotografia em P&B é a magia do pensamento conceitual. Revela a beleza do pensamento conceitual abstrato; um universo de conceitos.


“O preto e o branco não existem no mundo, o que é grande pena. Caso existam, se o mundo lá fora pudesse ser captado em preto e branco, tudo passaria a ser logicamente explicável. Tudo no mundo seria então ou preto ou branco, ou intermediário entre os dois extremos. O desagradável é que tal intermediário não seria em cores, mas cinzento... a cor da teoria. Eis como análise lógica do mundo, seguida de síntese, não resulta em sua reconstituição. As fotografias em preto e branco o provam, são cinzentas: imagens de teorias (óticas e outras) a respeito do mundo.” (FLÜSSER, 2002, p. 38)


Flüsser comenta também que graças ao aparelho fotográfico foi possível racionalizar a imagem e mundo representado. Primeiro se abstraiu os juízos verdadeiros e falsos – “Graças a tal abstração, pode ser construída a lógica aristotélica, com sua identidade, diferença e o terceiro excluído. Esta lógica, por sua vez, vai contribuir para construção da ciência moderna” (FLÜSSER, 2002: 39); Em segundo, abstraiu-se do universo as ações boas e más.


“Graças a tal abstração, podem ser construídas ideologias (religiosas, políticas etc.). Essas ideologias, por sua vez, vão contribuir para a construção de sociedade sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam de fato, embora não existam ações inteiramente boas ou inteiramente más, e embora toda ação se reduza, sob análise ideológica, a movimentos de fantoche. As fotografias em preto-e-branco são resultado desse tipo de maniqueísmo munido de aparelho. Funcionam.” (FLÜSSER, 2002, p. 39)


O fotografo simbolizou sua visão através do preto e do branco. Racionalizou e demonstrou com a luz, e sua ausência, as formas de um mundo em constante transformação. Forneceu um parâmetro crítico na imagem, esta que é o meio do homem entender o mundo que o rodeia. Como se o mundo em preto e branco fosse mais fácil de analisar. Fez da linguagem em preto e branco um instrumento oficial da documentação fotográfica.








[1] Vilém Flüsser compara o fotografo com o praticante de bushido ao esperar o momento exato para golpear, no caso clicar. Este é equivalente ao instante fotográfico de Cartier Bresson.




quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Clareando a Câmara de Barthes


Roland Barthes

“A foto é literalmente uma emanação do referente.
De um corpo real, que estava lá, e partiram radiações que vêm atingir, a mim, que estou aqui; pouca importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga meu olhar ao corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado.”



A Câmara Clara, 1980 Roland Barthes; uma meditação sobre a Fotografia, a Vida e a Morte. Um caráter emocional que nasce de uma simples foto da sua mãe em contraste com a linguagem analítica sobre a imagem fotográfica. A essência da fotografia e a morte de um ente querido; a mão do homem sobre a imagem ligada a um referente. Uma busca do significado da fotografia que resulta num ensaio obrigatório para entender a essência da imagem, os segredos por trás da fotografia, o efeito da fotografia no espectador.


O livro se desenvolve em duas partes: a primeira, onde o autor elabora uma metodologia que o auxiliará na resolução crítica da fotografia; a segunda é a formatação do seu pensamento e teoria.

Observou que na fotografia existiam algumas classificações intrínsecas, no que se refere seu corpus:

Fato/Empíricas (Profissionais/Amadoras);
Retóricas (Paisagens/Objetos/Retratos/Nus);
Estéticas (Realismo/Pictorialismo).

Porém, sem relação com sua essência, ela seria inclassificável. “Ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.” (BARTHES, 1984:13)

A Fotografia seria objeto de três práticas: fazersuportar e olhar.

1. O fazer seria o fotógrafo, que ele denomina de: Operator;
2. O suportar realizado por consumidores de imagens, que ele denomina de: Spectator;
3. O olhar seria do referente, no que ele denomina de: Spectrum. Este último, como um símbolo de retorno do morto.

“Diríamos que a fotografia sempre traz consigo um referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colocado um ao encontro do outro, membro por membro, como o condenado acorrentado a um cadáver.” (BARTHES, 1984, p. 15).

Tendo o gesto do Operator, o de surpreender o Spectator, isto traduzido em desempenhos, como: raridade do referente; apreender um gesto no seu trajeto efêmero; proeza; exploração das limitações e defeitos; e ter um grande “achado”, o inédito.

A Fotografia apresenta uma dualidade de elementos, onde um deles exige do spectator um reconhecimento cultural, gerando um gosto inconsequente, isto seria o Studium: um conjunto de elementos que denotam a história e características na fotografia; o outro seria um ponto de atração visual, o Punctum.

“Reconhecer o Studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com eles, aprova-los, mas nem sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura é um contrato feito por criadores e consumidores.” (BARTHES, 1984, p. 48).

Sobre o punctum, delimitado ou não, trata-se de um suplemento, acrescendo à foto algo já existente nela. Algo que não é estabelecido pelo operator, pois é uma relação de pós -produção, a imagem pronta nas mãos do spectador. Não seria possível estabelecer uma regra de ligação entre os dois elementos, o studium e o punctum. É uma co-presença, uma casualidade explicando o detalhe. O fascino do spectador com o ponto de magnetismo visual. Segundo o autor, toda foto é um contingente, e só pode significar assumindo uma máscara. Cita Calvino para designar a máscara, sendo uma face do produto de uma sociedade e sua história. “A máscara é o sentido, na medida em que é absolutamente pura...”. Pag. 59. E associa à mitologia, citando grandes retratistas como mitólogos: Nadar (A Burguesia Francesa); Sander (os alemães da Alemanha pré-nazista); Avedon (a high-class NY).

Comenta sobre uma Fotografia Unária, na qual seria uma fotografia contida de toda informação; sem ruídos e contrapontos, exemplifica com a fotorreportagem e a pornográfica. Com esses contrapontos Roland Barthes elabora a metodologia para a teoria desenvolvida na primeira parte do livro. Na segunda parte analisa uma fotografia em particular: a fotografia do Jardim de Inverno, uma fotografia onde continha a imagem de sua mãe. Através desta fotografia ele analisa, com seus novos parâmetros, sobre a Fotografia e ao final, seus próprios conflitos.

“Decidi então “tirar” toda a Fotografia (sua natureza) da única foto com segurança existiu para mim, e toma-la de certo modo de guia de minha última busca. Todas as fotografias do mundo formaram um labirinto. Eu sabia que no centro desse labirinto não encontraria nada além do que essa única foto, cumprindo a palavra de Nietzsche: um homem labiríntico jamais busca a verdade, mas unicamente sua Ariadne. A Foto do Jardim de Inverno era minha Ariadne, não porque ela me fizesse descobrir uma coisa secreta (monstro ou tesouro), mas porque me diria que era feito esse fio que me puxava para a Fotografia”. (BARTHES, 1984, p. 109).

Diferencia a fotografia da pintura. Exemplifica que a pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. Ao contrário, a Fotografia jamais se pode negar que a coisa esteva lá. Isso por causa do seu referente, que é a ordem fundadora da Fotografia. Seria então um “Isso-Foi”, ou ainda: o Intratável. Segundo o autor, “Tal seria o destino da Fotografia: ao me fazer crer que encontrei a Verdadeira Fotografia Total, ela realiza a confusão inaudita da Realidade (Isso-Foi) e da Verdade (É Isso).” (BARTHES, 1984: 158).

Explica que equivocadamente que em virtude de sua origem técnica associam a fotografia com a câmara obscura, porém demonstra que se deveria dizer câmara lúcida. Este um aparelho que permitia desenhar um objeto através de um prisma com o olho a modelo e outro no papel.

É emanação do referente, não importando o tempo, a emanação está presente. Por isso demonstre um favoritismo para a fotografia Preto e Branco: “... a cor é um revestimento aposto ulteriormente sobre a verdade original do Preto-e-Branco.” (BARTHES, 1984, p. 122).

Descobre um novo “estigma” que não o “detalhe” na Fotografia. Seria um novo punctum, que não seria de forma, mais de intensidade: O Tempo. Fala sobre a imobilização do Tempo ocorre de um modo excessivo “monstruoso”, sendo obstruído. É o modo como nosso tempo assume a morte, sob o álibi denegado perdidamente vivo, de que o fotógrafo é o profissional.

“A Vida/a Morte: o paradigma reduza-se a um simples disparo, o que separa a pose do papel final (...) a História é uma memória fabricada segundo receitas positivas, um puro discurso intelectual que abole o Tempo mítico; e a Fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz.”. (BARTHES, 1984, p. 138 e 139).

E em outro trecho: “A foto é como um teatro primitivo, como um quadro vivo, a figuração da face imóvel e pintada sob o qual vemos mortos.” (BARTHES, 1984: 54). Finaliza sobre o último ponto de parâmetro que seria o “ar”. Uma transmissão do estado de espírito; o temperamento do Referente revelado pela imagem.


“Como um suplemento da identidade (...) que é dado graciosamente, despojado de qualquer “importância”: o ar exprime o sujeito, na medida em que ele não se dá importância. O ar é assim, a sombra luminosa que acompanha o corpo; se a foto não chega a mostrar esse ar, então o corpo vai sem sombra, como no mito da Mulher sem Sombra, resta só o corpo estéril.”





sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O Código Moderno


Torre de Babel, Escher

"Ao ensinar-nos um novo código visual, a Fotografia transforma e amplia
 nossas noções  sobre o que vale a pena olhar e o que efetivamente podemos observar. 
Ela constitui uma gramática e, o que é ainda mais importante,
 uma ética do ver.” 
                   Susan Sontag




Ao explicitar o universo das imagens fotográficas como a base da nossa realidade, Susan Sontag em "Ensaios Sobre a Fotografia", se utiliza do mito da Caverna de Platão como parâmetro, e demonstra que é necessário destrinchar antologicamente a Fotografia para sairmos do confinamento da caverna com suas imagens projetadas da realidade. Necessitando assim, aprender o novo código visual, pois ele determina o nosso modo de olhar.  Considera as relações da fotografia com a arte, a consciência da realidade, o conhecimento científico e a beleza. Examina através da história da fotografia, e da arte, as distorções tanto estéticos como também morais, levantados pela presença e autoridade das imagens fotográficas na vida cotidiana.

Segundo a autora, existem características na imagem fotográfica: uma fidelidade visual da verdade real, através de uma transparência seletiva da escala reduzida, fragmento do mundo, numa determinada fração de tempo; como objeto, ela é fácil de carregar, nos motiva a colecionar e acumular, criando um “grande dicionário do mundo”, como num museu particular.

Quanto sua função social, além do uso comum em ritos familiares, ela está entre o turista e o desconhecido, ajudando-o a dominar o espaço. Porém, sua principal função é de comprovar e de denunciar, e desde que a policia de Paris utilizou a fotografia contra a Comuna de Paris, em 1871, os Estados Modernos utilizam no controle e vigilância no seu obscuro panóptico.  Pois ela é instrumento de poder, como carros e revolveres, e há semelhança entre o “apontar e apertar o gatilho” de uma máquina fotográfica a de um revolver. Sua tecnologia e potência são relacionadas como às do automóvel, embora este exija habilitação e conhecimento específico para o uso; agressividade direcionada para um mundo cada vez mais asfixiado de imagens.

 O ato de fotografar é comparado a um divertimento igual ao ato sexual ou de dançar, diferente da pessoa que é fotografado, não apresenta passividade e sim uma atividade semelhante de um voyeur; não somente observa, mas participa de forma independente, sem intervir, pois quem intervém é incapaz de registrar. Assim fotografar é, segundo a autora, interessar-se pelo statu quo, que vem da expressão in statu quo res erant ante bellum, uma expressão latina que designa o estado atual das coisas, seja em que momento for.

Em um mundo em constante transformação, não só física, mas também social, a fotografia se tornou um elo com o passado, uma espécie de máquina do tempo, sendo assim um memento mori. E ao fotografarmos, participamos da vulnerabilidade temporal das coisas. A fotografia e sua relação com o tempo valorizam tanto a arte temporal como a informação histórica. Preenchem vazios no retrato mental, tanto do presente quanto do passado.

Aponta um fator psicológico da fotografia, causada por essa separação com a coisa retratada, provocando artificialidade e ilusão, perjurando a vida moral do indivíduo sem que ele esteja consciente, apesar da fotografia poder lhe despertar consciência. Acostumado à imagem, onde ela perfura e anestesia a visão, não nos damos conta de quanto estamos imersos em imagens do horror.

 A fotografia é um objeto que transforma o aspecto visual em beleza, e a etimologia do nome calótipo que Fox Talbot, 1841, patenteou seu aparelho fotográfico significa: grafia de beleza, por "Kalo" significar Belo. No início do século XX, a fotografia influenciada pelo ideal de Whitman, introduz uma nova subjetividade na concepção poética, a idéia de totalidade. Walt Whitman, que em seus poemas eleva a condição do homem moderno, exprime poemas visionários, num ideal de unidade cósmica que o EU representa; influenciou todo o lirismo moderno ditado pela cultura norte americana, e seus ideais influenciaram Walker Evans, e o Alfred Stieglitz que durante a publicação da revista Camera Work  fomenta através das imagens a teoria e concepções whitmanescas. Assim buscavam imagens idealizadas, e toda fotografia valoriza seu tema, então, não há tema que não possa torna belo. 


              Através de Edward Steichen, na exposição “Family of Man”, realizada em 1955, e a Diane Arbus na mostra do seu trabalho em 1972, determinam dois estilos diferentes de expressar esses novos ideais: Steichen pressupõe uma condição ou natureza humana comum a todos; nega o peso determinante da história – das verdadeiras diferenças, injustiças e conflitos; Arbus rejeita a política, pois sugerem um mundo em que todos isolados são cristalizados em identidades e nos relacionamentos mecânicos. Nesta estética do grotesco, a autora compara as obras de Arbus com as de Warhol, os dois contemporâneos e fruto desta sociedade norte americana, viciadas em “imagens freaks”.

Sua natureza, a fotografia, é arte surreal em concepção e ideologia. As características antológicas da fotografia e do seu funcionamento testificam e materializam os conceitos trabalhados no surrealismo. Influenciados por Freud, os surrealistas buscavam imagens que provinham do inconsciente, porém não compreenderam que estes conceitos de irracional, inassimilável, brutalmente emotivo e misterioso estavam embutidos no conceito de Tempo.

Como a estética que aspira a ser política, o surrealismo opta pelos direitos de uma realidade instável e não-oficial. A fotografia auxiliou a denunciar e documentar as diferenças sociais. E o fotógrafo contempla esta realidade com curiosidade, desprendido e onipresente, opera como se sua atividade transcendesse os interesses de classes. Estas características da fotografia se confundem com o conceito flâneur  de Baudelaire; adepto da observação, conhecedor da empatia, o flâneur acha mundo “pitoresco”, e não se sente atraído pela realidade não-oficial que está por detrás da fachada da vida burguesa. A fotografia como documento social era o instrumento de uma atitude essencialmente de classe média, zelosa e tolerante, curiosa e indiferente; humanista.


           Quanto o valor de registro e documentação da fotografia, objeto surreal, a autora versa sobre suas qualidades temporais de preservação patrimonial. Transcreve Berenice Abbott: "O fotógrafo é o ser contemporâneo por excelência; através de seus olhos, o presente se torna passado".  
      

          Difere em dois tipos de fotógrafos que documentam, e sugere uma fotografia-ciência no modo de fotografar. Como trabalho de August Sander, que inicia um inventário do povo alemão a partir de 1911, que através da sua neutralidade, faz dele um exemplo de foto-cientista; definiria um novo olhar para as ciências tipológicas como: frenologia, criminologia, a psiquiatria e a eugenia. Ao final a autora compara as fotografias de Sander e seu método com a Farm Security Administration (FSA) , como modelos de documentação européia e americana, respectivamente. A fotografia na europa orientava-se pelos conceitos do pictorialismo (o exótico, o antigo e os pobres), a importância (ricos e famosos) e do belo; buscavam a neutralidade. A fotografia americana pressupõe um vínculo mais sumério, e menos estável  com a história; uma relação com a realidade geográfica e social mais propagandista. 


             A facilidade com que é possível fotografar e os resultados da relação com a câmara, sugere conhecimento, isso significa que a fotografia impulsionou às pretensões cognitivas da visão. E são duas as formas de conhecimento na fotografia: conhecimento lúdico e preciso, ou um modo pré-intelectual e intuitivo.


          O ato de pensar é visto como algo que obscurece a transparência da consciência do fotógrafo, e infringe a autonomia fotográfica. Defendido por fotógrafos consagrados, o estado de vazio seria uma imersão transcendental na realidade, de forma que o tempo se dilata e a velocidade de ação é igual a do pensamento. A coisa fotografada é reflexo do fotógrafo, e como pensava Lange e Minor-White, o universo interno é refletido externamente em imagens. Assim o ato de fotografar seria simplesmente uma expressão de temperamento.

Moholy-Najy defende uma auto-omissão, uma transformação psicológica da visão, e em 1936, ele amplia pra mais oito variantes da visão fotográfica: abstrata, exata, rápida ou lenta, intensa, penetrante, simultânea e distorcida. Porém estes são focos onde a fotografia é anticientífica, e segundo Robert Frank: “Há uma coisa que a fotografia deve conter: a humanização do momento.”. Isso demonstra um conflito entre a subjetividade e a objetividade, e durante um período marcado por Stieglitz e Weston, a fotografia que era avaliada por critérios de iluminação, composição, clareza do tema, definição precisa do foco e qualidade da imagem, cairam com a democratização da fotografia.

Num fim de ciclo, a autora retoma questões sobre a realidade, e difere a imagem fotográfica da imagem platônica ilusória. Outros defensores do real como Feuerbach desacreditava a imagem fotográfica, porém a fotografia não é sombra do real, mas sim registro de uma emanação, pois seria um vestígio do material fotografado; já que a fotografia são ondas de luz refletidas pelo objeto em um determinado tempo. A fotografia, diferente do que Platão pensava sobre as imagens, são realidades materiais, rica em informação das coisas que as emanou.