segunda-feira, 23 de maio de 2011

Registro Fotográfico – o relato visual



The D-Day - Robert Capa
        
“As imagens que mobilizam consciência estão sempre ligadas a
 determinadas situações históricas (...) a fotografia não gera atitudes morais, 
mas pode reforçá-las – e contribuir para que atitudes incipientes se consolidem.” 
Susan Sontag




            O mundo representado é produto último da complexa cadeia causal da profusão de imagens. Reflete raios que foram fixados sobre superfícies sensíveis através de reação física e química num processo ótico. A imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por uma cadeia interrupta de causa e efeito[1]. Porém esse caráter é atribuído à imagem técnica (imagem reproduzida mecanicamente, no caso a fotografia), onde seu caráter objetivo e direto faz com o receptor/observador as olhe como se fossem janelas da realidade exterior. “O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos (...) a tarefa da imagem técnica é de estabelecer código geral para reunificar a cultura.” (FLÜSSER, 2002: 14, 17)


A fotografia é uma prova não só do que está ao seu redor, mas também do que o indivíduo vê, não só um registro, mas uma avaliação do mundo. A fotografia não revela simplesmente a realidade, ela investiga e avalia por sua fidelidade. Em vez de simplesmente registrar a realidade, a fotografia tornou-se a forma como as coisas nos parecem, transformando assim a própria noção de realidade.


É um novo tipo de memória que se sobrepõem à memória escrita, assim como essa se sobrepôs à memória oral. Eternizar o momento, essa foi a grande inovação da fotografia. E precisamente por lapidar e cristalizar determinado momento num instante que toda fotografia é testemunha da dissolução inexorável do tempo. Não fotografar seria sinal de indiferença perante a um indivíduo ou evento; ao fotografar participaríamos da vulnerabilidade e mutualidade de uma pessoa, objeto ou acontecimento.



“Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas (...) vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies (...) o fato relevante a ela é que as fotografias abrem ao observador, visão do mundo (...) era de se esperar: o universo fotográfico representa o mundo lá fora através deste universo, o mundo.” (FLUSSER, 2002, pp.14, 17).



Pode constituir perfeitamente a prova irrefutável de que certo evento ocorreu, e diferente da pintura que é uma interpretação seletiva, a fotografia poderia ser “considerada uma simples transparência seletiva (...) fotografar é apropriar-se da coisa fotografada” (SONTAG, 1981: 6, 7). A fotografia nunca é menos que um registro de uma emanação, vestígio material do tema fotografado, a tal ponto que pintura alguma poderia comparar-lhe. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. Ao contrário, a fotografia jamais se pode negar que a coisa esteve lá. Isso por causa do seu referente, que é a ordem fundadora da Fotografia. Seria então um “Isso-Foi”, ou ainda: o intratável. Segundo Roland Barthes: “ela realiza a confusão inaudita da Realidade (Isso-Foi) e da Verdade (É Isso)” (BARTHES, 1984:158).


            A fotografia é um instante do momento privilegiado, convertido em um pequeno objeto que se pode guardar e ver novamente; ela brinca de escala do mundo, reduz, corta e fixa aquilo com que nos deparamos. Tornou-se um dos principais instrumentos capazes de nos fazer conhecer determinada experiência, dando-nos a sensação dela participar, mesmo só como observadores. Causa impacto na medida em que revela algo original; é valorizada porque nos fornece informações. Ela é uma pequena porção do espaço, bem como do tempo. Ela registra e reproduz, seu rastro sugere que aquilo existiu.


           

“A noção de rastro postula que coisa e imagem estejam, ao mesmo tempo, ligadas pela força de um contato físico, e separadas por uma incisão franca e brutal, sem mediação, que os lingüistas qualificarão de “corte semiótico”. Quanto ao registro, o aspecto químico da fotografia reforça a representação em seu funcionamento ao mesmo tempo bipolar (de um lado a coisa, do outro a imagem) e em sentido único: da coisa à imagem, do exterior (o mundo) para o interior (a câmara escura). O registro e a rastro consagram evidentemente o caráter mecânico da imagem, a nova mescla dos corpos no âmago de seu processo de produção, visto que a fotografia põe a relação coisa-imagem no lugar da relação pintor-quadro.” (ROUILLÉ, 2009, p.76)



            A confiabilidade, a exatidão e precisão que caracteriza a fotografia contribuem para a adaptação do domínio da imagem em relação o tempo, sendo possível dar conta do papel de intercessora, se beneficia do status de documento a fim de registrar metodicamente e mimeticamente tudo aquilo que um dia irá desaparecer.


            Garantir a mediação entre o aqui e o que esteve lá é uma das grandes funções da fotografia. Ao dirigir o olhar para os limites do tempo, a fotografia acompanha o olho do especialista em outra direção. A fotografia faz ver mais, ela permite, sobretudo, enxergar coisas diferentes daquelas oferecidas somente na imagem, produz novas visibilidades, extrai evidencias inusitadas e não percebidas no momento do fato ocorrido. Assim, a fotografia provoca um despertar de consciências. 

            A fotografia não apenas tornou possível que se captasse mais profundamente através do ato de ver, modificou a própria visão, conduz ao conhecimento das coisas, na medida em que despe a visão e possibilita a análise. “É freqüentemente invocada como uma contribuição à compreensão e à tolerância” (SONTAG, 1981:106)   


            O registro fotográfico é a reunião da intenção do fotógrafo, acrescida de fatores intelectuais, emotivos, fundamentados em um tratamento expressivo que ele fornece sobre significado de ver e registrar a realidade que representa na imagem fotográfica. O registro caracteriza o principal elemento constitutivo da narração visual, a fotografia intensifica o ato de olhar, gravando a observação do fenômeno. Enfatiza o conjunto de dados empíricos reunidos, disponibilizando elementos mais transparentes na investigação. Susan Sontag afirma que: “A fotografia implica inevitavelmente certo patrocínio da realidade. Por estar ‘lá fora’, o mundo passa a estar ‘dentro’ da fotografia” (SONTAG, 1981:79). Confirmando a existência de uma perfeita analogia do registro fotográfico com o real.


Assim, através da imagem fotográfica, é possível a reativação da memória para fatos e objetos anteriormente vistos, e devido à limitação da visão e da percepção de um mundo em movimento - elementos que desfilam diante da visão, passam despercebidos. 


         Na passagem do visível para o visual, foi necessário reconhecer e, de certa maneira, integrar três modalidades de tratamento[2]: o documento visual como registro produzido pelo observador; o documento visual como registro ou parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente, a interação entre observador e observado.

A visualidade e seu circuito comunicativo projetam para o futuro as imagens produzidas num certo presente, como uma mensagem que se processa através do tempo, como documento e monumento[3], compondo o tempo da experiência de projetar um mundo pleno de significados e visualmente relevante. O que é visualmente relevante no presente chega ao futuro como um passado visível. O agenciamento das imagens ao longo do tempo é mediado por um conjunto de práticas sociais de rememoração e esquecimento, distinguindo o que merece, ou não, ganhar destaque na produção de certa memória social dos grupos, família e nações.

Os modos de representação do espaço influem nas imagens da cidade e, estas repercutem nas posições que os sujeitos assumem a respeito das ações propostas para a coletividade. Transformações manifestadas na cidade contemporânea em sua busca incessante pelo progresso aniquilando marcas do passado. Em um mundo em constante transformação, não só física, mas também social, a fotografia (imagem técnica) se tornou um elo com o passado, uma espécie de máquina do tempo, sendo assim um memento mori. E ao fotografarmos, participamos da vulnerabilidade temporal das coisas. A fotografia e sua relação com o tempo valorizam tanto a arte temporal como a informação histórica. Preenchem vazios no retrato mental, tanto do presente quanto do passado.

Como resultado de uma atividade da visão, a fotografia produz um registro sensível da experiência social, através de um aparelho, a câmera fotográfica. Registra-se a experiência vivida em um determinado tempo presente. Assim, a prática fotográfica circunscreve um espaço social, cujo primeiro objetivo seria compor uma imagem do tempo vivido ou tempo da experiência observada. Caracterizada como fruto pós-histórico, torna-se assim, consequência de todo ato humano, pois tudo tende a ser registrado pela a imagem técnica. O que se vê e se considera digno de registro, define uma visualidade historicamente determinada por uma economia de sentidos e seleção de representações, associadas aos diferentes grupos sociais.






[1] BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 
[2] LE GOFF, Jacques. Memória. In: _____. História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2003.
[3] MENESES, Upiano. Revista Brasileira de História, vol. 23, nº45.