domingo, 26 de fevereiro de 2012

Documentando o Tempo

“Cada fotografia é um momento privilegiado, convertido em pequeno objeto que se pode guardar e olhar novamente.”  

 Susan Sontag


    Nuvem de cogumelo resultante da  explosão nuclear da Fat Man sobre Nagasaki , 18 km acima do solo,
 a partir do
Hipocentro.  


A fotografia é um artefato, brinca com a escala do mundo, é reduzida, ampliada, cortada e recortada, distorcida e consertada. Envelhece com o passar do tempo, adoece, pois está sujeita a ser infestada por bactérias e fungos comuns a objetos de papel.  


“Mesmo não sendo em sua natureza um documento, cada imagem fotográfica contém, no entanto, um valor documental que, longe de ser fixo ou absoluto, deve ser apreciado por sua variabilidade no âmbito de um regime de verdade – regime documental.” (ROUILLÉ, 2009, p. 27 )


A fotografia está associada à ideia de documento: ela serve para testemunhar uma realidade, e em seguida, para lembrar a existência desta mesma realidade. O tempo tem aqui um papel fundamental, em particular, do ponto de vista histórico e emocional, quando a fotografia é testemunha de mudanças, de transformações físicas e materiais, de desaparecimento de objetos ou lugares, como também a morte de entes queridos. Na palavra documento há uma ideia de singularidade: a fotografia testemunha de maneira única e própria.

Jacques Le Goff[1] considera a fotografia, simultaneamente, como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado: condições de vida, moda, infraestrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc.; no segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento[2], se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.

O fotógrafo, mesmo que não saiba, transforma a realidade em antiquário, e a fotografia é por si só uma antiguidade instantânea. É um objeto que nos fornece possibilidade de consumirmos o passado. Segundo Susan Sontag: “Colecionar fotografias é colecionar o mundo (...) através da fotografia, cada família constrói uma crônica – retrato de si mesma – uma coleção portátil de imagens que testemunham sua coesão.”. (SONTAG, 1981: 3 e 9). O álbum é um museu portátil, constituído de objetos com peso de uma pluma.


“O ato fotográfico arraigou-se de maneira tal na construção das memórias familiares, na sociedade ocidental, que é impossível falar sobre passado sem ter como incentivo de rememoração as imagens fotográficas. Uma atividade que estabeleceu responsabilidades em relação à preservação do passado, criando a figura do guardião de álbuns, ou simplesmente guardá-las em caixas, é o depositário de muitas histórias” (MAUAD, 2008: 57)

           
            O fotógrafo Auguste Salzmann foi um pioneiro na linguagem documental da fotografia. Até então as ilustrações eram as comprovações documentais de um lugar ou de um acontecido. Salzmann fomenta um debate entre o valor científico da fotografia para função de documento. Recolheu em um álbum 150 provas fotográficas para confirmar as teorias do arqueólogo Félicien Caignart de Saulcy. Este voltara de Jerusalém com ilustrações, porém estas não o davam credibilidade. Salzmann não só comprova o arqueólogo como também dignifica a função do fotógrafo como cientista e da fotografia como documento verissímil.


“A fotografia-documento refere-se inteiramente a alguma coisa palpável, material, preexistente, a uma realidade desconhecida, em que se fixa com a finalidade de registrar as pistas e reproduzir fielmente a aparência. Essa metafísica da representação, que se baseia tanto nas capacidades analógicas do sistema ótico quanto na lógica de impressão do dispositivo químico, leva a uma ética da exatidão e a uma estética da transparência.” (ROUILLÉ, 2009, p. 62)


Associada, por exemplo, às grandes viagens do século XIX, ela se constituiu num novo instrumento de descoberta do mundo; depois, cada vez mais aperfeiçoado, este instrumento informava visualmente e contribuía para o conhecimento e para a compreensão dos fatos. Primeiro como substituta do caderno de desenhos do viajante, depois associada à exploração científica, a fotografia deu a volta ao mundo. Geógrafos e etnógrafos passaram a considerá-la como um documento objetivo, despido de emoções. Claude Lévy-Strauss deixou de sua estadia na África e no Brasil um importante documentário. Assim a fotografia se instrumentalizou nas faculdades antropológicas e sociais como documento de pesquisa no trabalho de campo.




O Tempo -  Kaio Almeida






[1] LE GOFF, Jacques. Memória. In: _____. História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2003.  
[2] LE GOFF, Jacques. apoud  MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografia. Niterói, Ed. da UFF, 2008.