quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Olhar Enquadrado



Auto-Retrato

 "A visão fotográfica implica uma aptidão para
 descobrir a beleza no que todo mundo vê, mas despreza,
 por ser excessivamente comum (...) Há um heroísmo peculiar pelo mundo a fora desde que se inventou a câmara: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou novo modelo de atividade independente que permitiu a cada um
revelar certa sensibilidade única e ávida." 
Susan Sontag



Por causa da rapidez da câmara, registra-se tudo, o fotógrafo fez do ato de ver um tipo novo de projeto. Como se o próprio ato de ver fosse capaz de revelar a verdade. Não há apenas a atividade simples e unitária da visão (registrada e auxiliada pela câmara), mas uma “visão fotográfica”, que ao mesmo tempo é uma nova forma de ver, é uma atividade desenvolvida.

O fotógrafo contempla esta realidade com curiosidade, desprendido e onipresente, opera como se sua atividade transcendesse os interesses de classes. Estas características da fotografia são do flâneur; adepto da observação, conhecedor da empatia, vê o mundo de forma pitoresca. Não se sente atraído pela realidade não-oficial que está por detrás da fachada da vida urbana, mas sim aquela que distorce as relações sociais.

Segundo Flüsser, o fotógrafo se move como um caçador paleolítico em busca de sua caça numa tundra. Porém não se movimenta como se estivesse em uma pradaria aberta, e sim na floresta densa da cultura, levando em considerações os obstáculos dos objetos culturais, objetos que contêm intensões determinadas, o fotógrafo em seu caminho tortuoso avança contra as intensões programadas da cultura que o rodeia.


“Um espaço-tempo fotográfico, que não é nem newtoniano nem einsteniano. Trata-se de espaço-tempo nitidamente dividido em regiões, que são, todas elas, pontos de vista sobre a caça. Espaço-tempo cujo centro é o “objeto fotografável”, cercado de regiões de pontos de vista. Por exemplo: há região especial para visões muito próximas, outra para visão intermediárias, outra ainda para visões amplas e distanciadas. Há regiões espaciais para perspectiva de um pássaro, outras para perspectiva de um sapo, outra para perspectiva de criança. Há regiões espaciais para visões diretas com olhos arcaicamente abertos, e regiões para visões laterais com olhos ironicamente semifechados. Há regiões temporais para um olhar-relâmpago, outras para um olhar sorrateiro, outras para um olhar contemplativo. Tais regiões formam uma rede, por cujas malhas a condição cultural vai aparecendo para ser registrada.” (FLÜSSER, 2002: 30)

           
Mudando de regiões, o fotógrafo, altera entre barreiras de tipos de espaço e os tipos de tempo; emancipa-se dos padrões da condição cultural pré-estabelecida. Porém só fotografa o fotografável. Transcodifica os objetos culturais em cenas conceituais com critérios de sua ética para trazer informação e conhecimento.

As características do caçador no qual o fotógrafo e seu aparelho se confundem, formam uma unidade funcional inseparável. Produz superfícies nas quais se realizam em cenas. Estas significam conceitos programados na memória do fotógrafo e do aparelho, num jogo de permutação homem/máquina transcodificada em imagem. Hesitações claras e distintas num jogo quântico de saltos e pontos de vistas.

Susan Sontag diz que: “o fotografo saqueia e ao mesmo tempo preserva, denuncia e consagra.” (SONTAG, 1981: 65). Através de um mistério que envolve a mortalidade e a transitoriedade, fornece histórias instantâneas, sociologia instantânea e participação instantânea. Resume a realidade num cortejo de fragmentos casuais. “O fotógrafo fez do ato de ver um tipo novo de projeto: como se o próprio ato de ver, perseguido com suficiente avidez e sinceridade, fosse capaz de reconciliar os imperativos da verdade com a necessidade de achar o mundo belo.” (SONTAG, 1981: 85)

Sontag chamou de heroísmo da visão, pois inaugurou novo modelo que permitiu a cada um revelar certa sensibilidade única e ávida. Numa espécie de safári cultural, científico e de classe, o fotógrafo ludibriaria o mundo, qualquer que fosse o sacrifício de paciência e desconforto, por meio de uma visão ativa, gananciosa, calculada e informativa.


“A visão fotográfica implicava uma aptidão para descobrir a beleza no que simplesmente ver o mundo tal como ele é, incluindo suas maravilhas já celebradas; deveria provocar interesse, por meio de novas decisões visuais (...) o belo tornou-se simplesmente o que o olho é incapaz de ver (ou não vê): aquela visão fraturada, desconjuntada, que tão somente a máquina fotográfica pode proporcionar.” (SONTAG, 1981, pp. 87, 88). 


            Susan Sontag comenta em se livro que Alfred Stieglitz relatou com orgulho o fato de ter permanecido três horas durante uma tempestade esperando o momento exato para realizar sua fotografia “Quinta Avenida, Inverno”, esta busca do momento exato se tornou a marca registrada do fotografo. Cartier Bresson foi o pai desta escola, onde o instante decisivo e a composição equilibrada são as características principais. Como se fosse um praticante de bushido[1], espera o tempo que for para dar o clique no momento exato, como se o fotografável e o fotógrafo fossem um.

            Fotógrafos como Edward Weston, imortalizou a geografia do corpo humano com os close-up de nus, e Minor White, conhecido pelo foco nítido e a bela tonalidade de preto-e-branco que funcionam como metáforas; Paul Strand, com formas geométricas ou abstratas, assumiu outra atitude com relação ao sensorial, uma espécie de cultivo didático da percepção, independente das noções relativas ao que vale ou não a pena desse observar; Moholy-Nagy fomentou esta visão em seu livro "Von Materiel zur Architektur", publicado em inglês como "The New Vision". Defende a auto-omissão, uma transformação psicológica da visão, e em 1936, ampliou para mais oito variantes da visão fotográfica: abstrata, exata, rápida ou lenta, intensa, penetrante, simultânea e distorcida; Albert Renger-Patzsch que publicou o best-seller: "Die Welt ist schön" (O Mundo é Belo), que consistia em 100 fotografias, na sua maioria close-ups, cujos temas incluíam desde uma folha de colocásia até as mãos de um oleiro. Influenciaram percepções do belo e da contemplação na visão fotográfica.


“Enquanto a maior parte das pessoas que tiram fotografia está tão somente repetindo noções assimiladas sobre o que seja belo, os fotógrafos profissionais muitas vezes pensam que as estão desafiando (...) o fotógrafo tomou para si a responsabilidade de levar adiante a tarefa de Blake de apurar os sentidos, ‘relevando ao outros o mundo que vive ao nosso redor’, tal como Weston descrevia seus trabalhos, ‘mostrando-lhes aquilo que seus próprios olhos cegos não haviam visto’ (...) a visão fotográfica, quando examinamos seus preceitos, vem a ser, na verdade, a prática de uma espécie de visão dissociada, um hábito subjetivo que se vê fortalecido pelas discrepâncias objetivas entre o modo como a câmara e o olho humano focalizam e julgam a perspectiva.” (SONTAG, 1981, pp. 93, 94).


A linguagem da visão fotográfica extrapolou os limites da percepção ótica do homem e com sua simulação de um mundo em preto e branco determinou um novo parâmetro racional. A fotografia em preto e branco é uma imagem de cenas em situações “ideais”. O branco é a presença de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. Roland Barthes demonstrava favoritismo pela fotografia Preto e Branco: “a cor é um revestimento aposto ulteriormente sobre a verdade original do Preto-e-Branco.” (BARTHES, 1984, p. 122). Segundo Flüsser, o preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da ótica. Cenas em preto e branco não existem, mas fotografias em preto-e-branco, sim. Transformam seus conceitos em cenas. A fotografia em P&B é a magia do pensamento conceitual. Revela a beleza do pensamento conceitual abstrato; um universo de conceitos.


“O preto e o branco não existem no mundo, o que é grande pena. Caso existam, se o mundo lá fora pudesse ser captado em preto e branco, tudo passaria a ser logicamente explicável. Tudo no mundo seria então ou preto ou branco, ou intermediário entre os dois extremos. O desagradável é que tal intermediário não seria em cores, mas cinzento... a cor da teoria. Eis como análise lógica do mundo, seguida de síntese, não resulta em sua reconstituição. As fotografias em preto e branco o provam, são cinzentas: imagens de teorias (óticas e outras) a respeito do mundo.” (FLÜSSER, 2002, p. 38)


Flüsser comenta também que graças ao aparelho fotográfico foi possível racionalizar a imagem e mundo representado. Primeiro se abstraiu os juízos verdadeiros e falsos – “Graças a tal abstração, pode ser construída a lógica aristotélica, com sua identidade, diferença e o terceiro excluído. Esta lógica, por sua vez, vai contribuir para construção da ciência moderna” (FLÜSSER, 2002: 39); Em segundo, abstraiu-se do universo as ações boas e más.


“Graças a tal abstração, podem ser construídas ideologias (religiosas, políticas etc.). Essas ideologias, por sua vez, vão contribuir para a construção de sociedade sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam de fato, embora não existam ações inteiramente boas ou inteiramente más, e embora toda ação se reduza, sob análise ideológica, a movimentos de fantoche. As fotografias em preto-e-branco são resultado desse tipo de maniqueísmo munido de aparelho. Funcionam.” (FLÜSSER, 2002, p. 39)


O fotografo simbolizou sua visão através do preto e do branco. Racionalizou e demonstrou com a luz, e sua ausência, as formas de um mundo em constante transformação. Forneceu um parâmetro crítico na imagem, esta que é o meio do homem entender o mundo que o rodeia. Como se o mundo em preto e branco fosse mais fácil de analisar. Fez da linguagem em preto e branco um instrumento oficial da documentação fotográfica.








[1] Vilém Flüsser compara o fotografo com o praticante de bushido ao esperar o momento exato para golpear, no caso clicar. Este é equivalente ao instante fotográfico de Cartier Bresson.




2 comentários:

  1. excelente material, curti a comparação que rola com o Bushido. a diferença que o golpe do samurai normalmente termina algo para sempre, já na maquina fotográfica, após o click o visual é imortalizado estático e eterno.
    Parabéns.

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  2. falei que viria e vim ;)
    bom te ler!
    beijos, suzana.

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